O ser e o ter
É impressionante com o ter está tomando na vida das pessoas a dimensão do ser. A começar pela escola, onde matérias como filosofia e educação moral e cívica foram substituídas. As pessoas estão acreditando que para ser, é preciso primeiro ter. Quem inventou o dinheiro não estava em um dia muito inspirado, e colaborou para isso. Se na troca, havia um valor além do monetário, o dinheiro criou a ilusão de que cada objeto tem um valor mensurável financeiramente. E está associado a emoções nem sempre correspondentes.
A mídia colaborou para criar essa ilusão. Quando ainda se permitia propaganda de cigarro, ela estava sempre associada à liberdade, aventura, ousadia. A realidade é bem oposta, os fumantes acabam na prisão do vício, vivendo uma aventura às vezes muito dolorosa. Os prédios derrubam milhares de árvores, em seu lugar coloca-se nomes como "Bosque das mangueiras", "Floresta azul".
Um amigo? Compra-se. Um amor? Compra-se. Uma ajuda? Compra-se. Na maioria dos condomínios, a reunião entre moradores é recheada por brigas, a mídia os vende como se as pessoas fossem morar na paz, na tranqüilidade, num lugar encantado. Não se pergunta o quanto se é, mas o quanto se tem. E não se tem porque se é, mas porque se quer. Sem limites para o querer.
O capitalismo captou a insatisfação do ser humano. O desejo que não se satisfaz. Cria celulares, carros de luxo, DVDs, TVs digitais, e continua criando, enquanto o ser humano continua iludindo-se da satisfação. A tecnologia não mais acompanha o ser humano. Criou-se o fósforo, quando se quis ter fogo; criou-se a roda, quando se quis locomover-se; criou-se o papel, quando se quis preservar a escrita. Atualmente cria-se primeiro, depois estimula-se o desejo. A tecnologia não está mais a serviço do ser humano, ela está além dele, e ele a serviço dela.
O ar-condicionado nos fez insensíveis ao calor, tão insensíveis que agora sofremos com o aquecimento global. A ilusão de conforto nos carros, casas, lanchas, bares, restaurantes tornou o mundo das ruas quase insuportável. Alterou o clima, fez das vias de transporte um amontoado de carros. Sob nossas cabeças não cai apenas chuva, mas aviões.
Se o ter continuar a progredir em nossas consciências, não restará nem mundo nem consciência para habitar.